Hora de dormir. Tarde já, dia intenso de trabalho braçal, o corpo cansado pede a maciez de seu colchão de espuma viscoelástica. A semana rendeu a montagem e desbaste pesado de uma nova peça de madeira em seu ateliê. A satisfação com o sucesso da empreitada, no entanto, é ofuscada por um sentimento de ausência. Ausência de afeto naqueles dias, ausência daquele olhar presente, atento, indagador, ausência daquela risada aberta, debochada, ausência daquelas mãos ágeis e malandras sobre seu corpo.
Em casa já, busca na água quente do banho descarregar algo dessa melancolia, da tristeza que se apossou de sua alma. A comida desce forçada, boa noite, filho, vou dormir, estou cansada. O corpo se esparrama finalmente sobre o colchão macio e só deseja que os olhos encerrem mais um dia. Mas os olhos são a porta da alma, e a alma está desperta, inquieta, triste. Chora.
Amanhece fim de semana. Em casa, tempo de confinamento. O sol da manhã aquece seu rosto. Os olhos ainda inchados pelas lágrimas derramadas na madrugada percorrem o desenho das nuvens e aterrissam sobre a folha de papel em branco que ficou sobre sua mesa, a dias esperando algo da manifestação poética que habitualmente se condensa na forma de uma nova escultura, um novo desenho, um novo pensamento transcrito em palavras.
Senta-se ali. E ali se deixa ficar encarando a folha de papel e repassando seus últimos dias, meses, como foi mesmo que cheguei nesse lugar? Seus dedos alcançam a lapiseira fantástica com grafite 6B que ganhou de sua mãe e começam a traçar aleatoriamente linhas biomórficas que aos poucos se conectam, se perpassam, se sobrepõem e configuram algo que não lhe é estranho, mas ainda não claramente revelado. Segue movendo a lapiseira sobre o papel num processo meditativo, quase displicente, e aos poucos a imagem vai se revelando mais nítida, mais clara, e… óbvio. Seu auto retrato estampado ali com um sorriso intenso, uma fronte iluminada e confiante, um olhar firme e acolhedor que lhe diz com todas as letras: Te amo.
Julia Krantz